05/04/2022

Sustentabilidade

Devastação e refluxo social

Pelo menos 160 milhões de pessoas foram empurradas para pobreza no mundo nos últimos dois anos

*Cristiano Teixeira

 

O mundo está realmente passando por um momento único. Não bastasse a pandemia da Covid-19 estar entre as mais avassaladoras da História, vivemos também uma guerra ao vivo e a cores envolvendo uma potência bélica e atômica, no pior embate em terras europeias desde a Segunda Guerra Mundial.

 

Isso sem contar os conflitos que existem hoje em 23 países, afetando cerca de 850 milhões de pessoas, segundo estimativa do Banco Mundial.

 

As consequências humanitárias são enormes, inclusive no campo econômico, e causam devastação social, elevando à urgência máxima a necessidade de recomposição e desconcentração de renda por meio de emprego e apoio social que gere dignidade.

 

Nestes dois últimos anos, e em uma estimativa ainda preliminar, estamos falando de pelo menos 160 milhões de pessoas que foram empurradas à pobreza no mundo todo e cerca de 17 milhões perderam a vida somente para Covid-19, segundo dados da ONG Oxfam, atuante em mais de 90 países.

 

A Oxfam também estima que 99% da população mundial viram sua renda cair. Por outro lado, um novo bilionário surgiu a cada 26 horas desde que a pandemia foi decretada.

 

Se levarmos em conta apenas as fortunas das dez pessoas mais ricas do mundo, o salto foi de mais de 100%, acumulando US$ 1,5 trilhão. É quase o tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil que, em 2021, foi de US$1,6 trilhão.

 

Já a guerra entre Rússia e Ucrânia, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), levará um terço da população ucraniana para condições de vida abaixo da linha da pobreza.

 

Tais perdas e concentração de renda claramente afetam a economia mundial e, pior, colocam milhões de seres humanos em condições indignas de sobrevivência. Por isso, refletir sobre quais caminhos poderiam amenizar esse cenário de devastação social é imperativo.

 

Um dos primeiros e mais eficazes instrumentos poderia ser o aperfeiçoamento ou criação de programas de transferência de renda, a serem usados no curto prazo para resgatar essa grande parcela da população. São ações que têm bom custo-benefício. Com poucos recursos, chega-se a resultados altamente positivos.

 

Mas como fazer isso em meio a crescente preocupação pela expansão fiscal dos governos durante a pandemia e reflexos no aumento da inflação em todas as partes do mundo (corroendo ainda mais a renda dos trabalhadores) ainda é uma pergunta sem resposta.

 

De novo tomo como fonte a PNUD, que estimou que uma operação emergencial de transferência de dinheiro em grande escala, ao custo de aproximadamente US$ 250 milhões por mês, cobriria perdas parciais de renda para 2,6 milhões de pessoas que devem ocupar a linha da pobreza na Ucrânia.

 

Falar em programas de transferência de renda com contrapartidas também deve ser essencial no combate às desigualdades, porque coloca como obrigação a quem recebe o benefício manter seus filhos vacinados e estudando, o que preserva a saúde, ajuda na formação de políticas públicas e reduz gastos, já que evita doenças, além de atacar diretamente uma das questões centrais da desigualdade: a educação.

 

Não há como expandir e fincar as estruturas econômicas e sociais necessárias sem mão de obra bem formada, que gera qualidade de emprego, rendimentos e, por consequência, melhora a produtividade das empresas, o poder de compra da população e as receitas para o setor público.

 

Exemplos do poder transformador da educação não faltam, como a Coreia do Sul que, nos anos 1980, tinha indicadores socioeconômicos iguais ou piores do que o Brasil. A diferença foi que os coreanos decidiram investir pesado em educação e, três gerações depois, já eram uma potência econômica e até cultural, com níveis de bem-estar da população elevados.

 

Há poucos anos discutíamos o “emprego do futuro”, mas a pandemia e a guerra estão causando um enorme refluxo social. Temos de começar novamente, como uma busca diária de automotivação pelos resultados ainda não atingidos, mas com menos debate sobre modelos políticos e ideológicos e mais na legitimidade da execução universal de ações que de fato tragam o resgate da dignidade humana.

 

*Cristiano Teixeira é embaixador pelo Clima da Rede Brasil do Pacto Global da Organização das Nações Unidas, membro do Business Leaders da COP26 e CEO da Klabin

 

Fonte: https://oglobo.globo.com/economia/ceo-da-klabin-devastacao-refluxo-social-1-25463177